segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Shopenhauer

Dentro da filosofia universal ocupa Arthur Schopenhauer uma posição singular, e completamente original. É o primeiro entre os filósofos de destaque, em tôda a história da filosofia, a proclamar sistematicamente que o amago do mundo é irracional, fundamentalmente oposto à inteligência e à razão.

Tal concepção representa uma verdadeira revolução na história da filosofia. A fé na razão é da própria essência de toda empresa filosófica e a essa fé na nossa inteligência corresponde, dentro da tradição filosófica, a firme convicção de que as nossas faculdades racionais nada são senão a manifestação, embora apagada, de uma inteligência universal que impregna todas as coisas e as dirige para determinados fins, segundo um plano inteligente. Precisamente por isso, por ser a nossa razão humana apenas um reflexo de uma razão suprema, dominadora do mundo, precisamente por isso temos a capacidade de filosofar, de conhecer, de saber e apreender a verdade, a essência das coisas. Pois as leis do universo são as da nossa própria inteligência. À nossa pesquisa incansável, embrenhada nos meandros misteriosos do ser, revela-se, milagrosamente, como num espelho, a nossa própria imagcm. Somos um microcosmo que repete, em escala miuda, o macrocosmo. Como o nosso olho, no dizer dos filósofos e de Goethe, é da qualidade do sol e por isso divisa a luz do sol, assim também a nossa razão é da qualidade da razão universal e por isso lhe apreende as leis e manifestações. Por mais que nós nos percamos no aparente caos dos fenômenos e na gigantesca amplitude dos espaços astronomicos, no fim encontramo-nos, deslumbrados, diante de nós mesmos. E toda essa concepção, que considera o homem um ser racional capaz de conhecer o ser racional do mundo, é, consciente ou inconscientemente, a base da maioria dos grandes filósofos, de Platão a Thomas de Aquino, de Descartes a Leibniz, Spinoza, Kant e Hegel, embora o criticismo de Kant já tenha começado a abalar essa segurança "dogmatica".

Schopenhauer rompe radicalmente com essa tradição. Estabeleceu como princípio metafísico um poder maldoso, boçal e cego, completamente irracional. Foi o primeiro a criar uma filosofia baseado no irracionalismo sistemático, mas não foi o último a fazê-lo. Dele parte toda uma corrente de irracionalismo, manifestando- se, de um lado, no "élan vital" de Bergson, e atingindo virulência, de outro lado, no pensamento de Nietzshe. Esse pensamento, por sua vez enriquecido pela afluente religiosa de Kierkegaard, tomou o nome de existencialismo (quer seja na sua forma religiosa ou ateista).

Como se vê, o impacto dessa concepção foi e é tremendo embora fôsse e seja mais indireto do que direto. Não é necessário falar aqui de fatos óbvios, tais como a "conversão" de Richard Wagner, entusiasta de Schopenhauer, cujo Tristão é, por assim dizer, o sistema do filósofo posto em música (embora a interpretação seja um tanto herética), ou como o pensamento de Níetzsche, cuja idéia fundamental , a vontade de poder, nada é senão a vontade de viver dd Schopenhauer, despida das suas raizes metafísicas; com a diferença de que Nietzsche, "invertendo os valores", não negava, mas afirmava, a vontade, transformando- a no mais alto e mesmo no único valor. Ao passo que na filosofia de Schopenhauer a vontade irracional, longe de ser um valor positivo, é apenas o poder de fato - causa de todos os sofrimentos - que por isso deve ser aniquilada, essa mesma vontade se torna na concepção nietzscheana o mais alto valor, a máxima finalidade, idealizada no "super-homem" .

A teoria de Schopenhauer de que a inteligência humana é essencialmente um instrumento dos interesses pragmáticos da vontade, foi adotada por Nietzsche, Bergson e os pragmatistas americanos, tais como W. James, Dewey e outros. A concepção estética do filósofo de Frankfurt empolgou gerações de autores e artistas e o conceito particular do gênio, como foi concebido por ele, encontrou ainda recentemente expressão num romance de Thomas Mann (Dr. Fausto), o autor dos Buddenbrooks, obra em que O Mundo como Vontade e Representação desempenha um papel decisivo. A hipótese de que existem relações entre o gênio e a loucura, conquanto explicação sistemática e Lombroso hauriu essa concepção na obra do filósofo alemão, colocando-o, respeitosamente, entre os gênios suspeitos de loucura.

A Metafísica do Amor Sexual (...) [obra que este ensaio de Rosenfeld introduz] é uma peça central do sistema schopenhauriano, cheia de intuições geniais, cuja repercussão no pensamento ocidental dificilmente pode ser exagerada. A vontade, que é a essência do mundo, tem o seu foco no impulso sexual: é pela primeira vez na história da filosofia, excetuando-se Platão, que o sexo atinge dignidade metafísica. Freud sempre negou ter lido Schopenhauer, mas a influência indireta, através de múltiplos canais subterrâneos, é tão evidente que não é preciso insistir nisso. É a obra de Schopenhauer, que pela primeira a vez focalizou sistematicamente a atenção nos fenômenos sexuais, inspirando com isso um exército de pensadores e autores, de Freud a Weininger, de Forel a D. H. Lawrence. (...) Toda a teoria freudiana de que o impulso sexual é a raiz inconsciente do nosso comportamento - representando o consciente uma crosta superficial - é de origem achopenhaueriana. A suposição freudiana da preponderância do irracional e inconsciente sobre o racional e consciente - base da metafísica de Schopenhauer - tornou-se, desde então, um lugar comum e pode-se dizer que o nosso tempo, no seu pessimismo quanto à capacidade do "homo sapiens" de guiar-se pelo intelecto e pela razão é tributário direto ou indireto da concepção de Schopenhauer, e o comportamento atual da humanidade parece ser um único, gigantesco esforço destinado a provar a metafísica do grande pessimista. A teoria da racionalização" e da "ideologia" - isto é, a elaboração de argumentos e mesmo de sistemas racionais, teorias filosóficas e teologias de acôrdo com os interesses mais ou menos inconscientes de uma classe ou de um indivíduo , teoria tão importante no pensamento de Nietzsche, Freud, no marxismo e na sociologia moderna, está contida na idéia de Schopenhauer de que não desejamos uma coisa por tertmos encontrado razões para desejá-la, mas que inventamos, posteriormente, razões, sistemas e teologias para mascarar, diante de nós mesmos, os nossos desejos profundos e os nossos interesses vitais.

Num pequeno ensaio de Schopenhauer sobre a loucura encontramos toda a teoria freudiana dos erros cotidianos, lapsos e esquecimentos casuais, a teoria da repressão e a teoria da fuga para a doença. É preciso notar, lemos num ensaio, "com quanto desagrado nós nos lembramos de coisas que ferem violentamente os nossos interesses, o nosso orgulho ou os nossos desejos; com quanta dificuldade nós nos decidimos a propor tais coisas ao nosso intelecto para exame exato e sério; com quanta facilidade, ao contrário, nos desviamos de tais fatos, esgueirando- nos deles, ao passo que circunstâncias agradáveis espontâneamente penetram na nossa consciência, tanto assim que, mesmo afastados por nós, insistem em assediar-nos. .. Naquela resistência da vontade de admitir que o adverso se apresente à luz da inteligência, reside o ponto em que a loucura pode irromper no espírito. Todo novo incidente adverso tem de ser assimilado pelo intelecto, isto é, tem de receber um lugar no sistema das verdades que se referem à nossa vontade, aos nossos interesses, e isso ainda que fosse necessário reprimir para tal fim coisas mais satisfatórias [o termo "verdraengen" para "reprimir" foi adotado por Freud] ... Se, todavia, em determinado caso, a resistência da vontade em face da aceitação de dada verdade alcança tal grau que aquela operação (da assimilação) não pode ser levada a efeito: se, portanto, certos incidentes e circunstâncias são sonegadas ao intelecto, porque a vontade não pode suportar-lhe a visão; se então, por causa do necessário nexo, a lacuna ou brecha é preenchida a bel prazer: neste caso estamos diante dum caso de loucura. Pois o intelecto renunciou à sua natureza de agradar a vontade; o homem imagina o que não é... A origem da loucura pode ser considerada, portanto, como um violento 'expulsar para fora da consciência" de qualquer fato, o que só é possível "pela inserção na consciência de qualquer outra idéia que não corresponde à realidade'".

Freud proclama a cura e Schopenhauer a salvação pela inteligência; ambos aceditam no poder da inteligência, na possibilidade da sublimação e libertação do homem através das suas faculdades racionais. A transformação dos fatos inconscientes em dados conscientes, pela análise em Freud, pela reflexão em Schopenhauer, é para aquele o caminho da cura e para este o caminho da salvação.

Arthur Schopenhauer nasceu em 1788, na cidade livre de Dantzig. Kant, cuja obra iria influenciá-lo profundamente, vivia ainda, Hegel, seu futuro "concorrente" na Universidade de Berlim, já era adolescente. Um ano mais tarde estourou a Revolucão Francesa, e uma década depois uma geração de jovens poetas alemães deslumbrará o mundo com a poesia romântica, cuja essência iria impregnar a obra de Schopenhauer.

A juventude de Schopenhauer não decorreu feliz. O pai, abastado comerciante, irascível e dominador, transfíere-se para Hamburgo, quando Dantzig é anexada à Prússia; não quer viver debaixo de um regime monárquico. Uma doença mental, herdada da mãe, e prejuízos finan-ceiros, levam-no, na idade de 58 anos, ao suicídio.

A mãe, vinte anos mais jovem do que o marido, era, bem ao contrário, uma mulher, muito bem equilibrada. Autora de romances sem grande valor, intelectualmente bem dotada, mas de poucos encantos femininos, muda-se depois da morte do marido para Weimar, deixando o filho em Hamburgo. Na capital espiritual da Alemanha, Frau Schopenhauer recebe duas vezes por semana a fina flor intelectual da sociedade weimarense, entre outras também Goethe, mais tarde magnânimo amigo do jovem Arthur - -na medida em que podia haver amizade entre dois homens tão imensamente convencidos do próprio valor. Wilhelm von Humboldt escreve, observador sagaz, escreve em 1809 sobre a mãe: "Ela me é desagradável pela sua figura e voz e pelo seu comportamento afetado".

Um homem mentalmente desequilibrado e uma mulher pouco materna - eis os pais do filósofo do pessimismo. Contudo, enquanto tem afeição pelo pai, só encontra pa-lavras amargas para Frau Schopenhauer: "A mãe transforma-se após a morte do marido fequentemente em madrasta"-. Ciumento como sempre foi, sente profundo desgosto em face da vida livre da mãe.

O jovem Schopenhauer é uma criança sem pátria e sem verdadeiro lar. Quando tem cinco anos, o pai muda-se para Hamburgo: "Assim perdi em tenra infância o meu direito pátrio. E desde então nunca conheci uma nova pátria". Em compensação tem o privilégio de realizar com o pai longas viagens à França e Inglaterra, ficando durante dois anos na cidade de Havre de Crâce, "onde meu pai me deixou... a fim de que, se possível me trans-formasse em um francês perfeito" ... Aos quinze anos parte de novo com os pais para um cruzeiro pela Holanda (país de origem da família), França, Inglaterra e Suíça. Essa viagem fora lhe prometida pelo pai em troca da promessa de desistir dos estudos universitários para dedicar-se ao comércio. Só alguns anos depois da morte do pai, o futuro filósofo romperia a promessa, incapaz de continuar numa profissão, contra a qual se rebelaram todos os seus instintos. Nas suas cartas à mãe, chora "a terrível perda da minha força adolescente, dispersa em negócios vazios", e sente-se "torturado por uma amargura insuportável do espírito".

Mas as viagens na época napoleônica, através de boa parte da Europa, proporcionaram- lhe experiências que nenhumma universidade lhe poderia ter dado. Entre os grandes filósofos alemães da sua época, é Schopenhauer o único que pertence à grande burguesia e que, muito viajado, demonstra possuir amplos conhecimentos das coisas, do mundo e dos homens, conhecimentos diretos, adquiridos pela própria observação. Isso confere às suas obras um encanto todo especial; elas parecem ser arejadas pelo vento do mundo. Toda linha revela o homem experiente, realista, que naõ acumulou a sua sabença no gabinete de estudos. Seu estilo é de um "homme du monde", elegante, preciso, rico de exemplos de cunho cosmopolita; estilo de um homem que leu os moralistas franceses e frequentou assiduamente os autores latinos e neo-latinos.

Tudo isso é qualquer coisa de inédito na literatura filosófica alemã, sobrecarregada de uma terminologia acadêmica e artificial, exalando, apesar do vôo imensamente audaz, o ar parado do provincialismo alemão.

Aos 18 anos, rompe com a profissão comercial e devota-se em várias cidades a estudos intensos. Já então é um solitário, vivendo à margem da sociedade. Velho deinais para os estudos ginasiais, a que tem de dedicar-se, cosmopolita demais para integrar-se na vida provincial, de temperamento brusco e modos pouco afáveis, extremamente orgulhoso e de mordacidade cruel, não teve amizades duradouras e profundas. As suas relações com os homens se tornam precárias. Já aos quinze anos é censurado pela mãe, por causa da sua no trato com as pessoas, e o colegial de 19 anos é expulso do ginásio de Gotha devido ao seu comportamento arrogante, "És insuportável e é difícil viver contigo", escreve-lhe a mãe.

Em Goettingen e Berlin estuda filosofia, mas em 1813 abandona a capital da Prússia para escapar às perturbações guerreiras. Retira-se para uma pequena cidade, onde "passei o resto do ano numa estalagem que me pareceu, numa época confusa, a residência adequada a um homem completamente sem pátria" e onde se sente satisfeito "por não ver um soldado sequer". Já naquela época começa a elaborar o seu sistema filosófico, obra que conclui em 1818, aos 31 anos, dando-lhe o título de O mundo como vontade e representação.

Nesta grande obra, sistema inteiriço, produzido, por assim dizer, de um só jacto, palpita sob a superficie serena, de grande beleza literária, a experiência dolorosa de um num mundo devastado por guerras, o qual se lhe afigura "o pior dos mundos possíveis", como se exprime rebatendo a afirmação de Leibniz de que esse mundo é "o melhor dos mundos possíveis". Já aos quinze anos revela extrema sensibilidade pelo sofiimento humano. "É terrível", escreve no seu diário, falando do Bagno de Toulon, "é terrível pensar que a vida desses míseros escravos das galeras... é completamente sem alegria... e totalmente sem esperança... Assustei-me ao ouvir que há aqui 6000 homens acorrentados nas galeras. A crueldade das guerras nnapoleônicas parece ter exercido profunda influência sôbre o seu pensamento e sua fantasia. Doravante, o mundo inteiro lhe parece um único grande hospital. E todo o "Weltschmerz" , toda a "dor do mundo" dos românticos vive nesta obra, que encerra em termos filosóficos a trágica experiência de um continente devastado a exausto, cujas mais elevadas esperanças de Revo-lução pareciam ter resultado em fracasso, milhões de homens pareceram, aparentemente sem sentido. Não havia sentido, tudo era caos. Na obra de Schopenhauer surge, pela Primeira vez no nosso tempo, o espectro do nihilismo.

Terminada, a obra, Schopenhauer embarca para a Itália, então o sonho de todos os intelectuais alemães que leram Goethe. O filósofo entra agora na casa dos trinta, já não é um jovem de bigodinho e juba loura. Os cabelos começam a rarear, a testa torna-se ainda mais ampla e o roste, com o nariz socrático, começa a semelhar ao do solitário Beethoven, cujas sinfonias costuma ouvir de olhos fechados. Com o gênio de Viena tem em comum um ouvido um tanto duro (mas nunca ensurdeceu) e como aquele não tem muita sorte com as mulheres. Toda a sua obra é testemunho do seu tremendo ardor sexual, nunca serenado pelo amor constante e profundo de uma esposa que o entendesse. Solteirão inveterado, que não teve nem ao menos o amor materno, odeia e despreza as mu-lheres, mas necessita delas desesperadamente, embora apenas como sexo. "ó volúpia, ó inferno, - ó sentidos, ó amor" - insaciáveis e invencíveis.. .!" lemos num poema que esreveu aos vinte anos.

Em Weimar apaixonou-se pela cantora Karolina Jage-mnn, amante do duque e inimiga de Goethe. "Casaria com esta mulher", confessava então à mãe, "mesmo se a encontrasse colocando pedras nas estradadas".

Durante a sua estada em Dresden (onde escreveu em quatro anos a sua obra principal) esteve ligado a uma mulher; outra amante, esta em Veneza, chama-se Teresa. É naquela cidade que perdeu a ocasião de conhecer Byron, de quem sempre foi um admirador irrestrito. "Possuia uma carta de recomendação a Byron, de Goethe (fato que lhe teria franqueado o acesso ao poeta inglês que, asse-diado como um astro cinematográfico, não costumava receber alheios) ... Sempre quis visitá-lo, com a carta de Goethe, mas certo dia desisti em definitivo. Naquele dia passeava eu com minha amante no Lido, quando minha Dulcinea exclamou: "Ecce il poeta inglese!" Byron passou perto de nós, com o cavalo a pleno galope. Durante o resto do dia a minha dona não esqueceu a impressão que ele lhe fizera. Resolvi, então, não entregar a carta de Goethe. Temia os chifres. Mas como me arrependi depois!

De volta da Itália, Schopenhauer habilitou-se como docente de filosofia na Universidade de Berlim. Mas como timbrava em colocar as suas aulas precisamente nas horas em que Hegel fazia as suas célebres preleções, ficava com a sala às moscas. A audiência mais numerosa que atingiu foi de nove estudantes. Desde então se referiu aos "pro-fessores da filosofia" com um despeito quase mórbido, despeito ainda intensificado pela completa indiferença com que o mundo acadêmico (e o mundo em geral) recebera a sua obra principal. Com efeito, só cerca de trinta anos após a publicação, a sua obra começava a ter repercussão, tornando-o em pouco tempo um dos homens mais famosos da Europa culta, procurado por celebridades de todas as partes do mundo.

A filosofia de Schopenhauer, como se sabe - e como mais adiante será exposto - é coroada por um verdadeiro evangelho do amor, no sentido de piedade e compaixão. Mas nas suas relações pessoais era um homem duro e inflexível. Desde 1826 tinha de pagar a uma costureira uima indenização anual de 60 taler, por tê-la posto violentamente no olho da rua. Quando ela finalmente morre, escreve-lhe no atestado de óbito: "Lá se foi a velha, livre estou da carga". Por ocasião da concordata de uma firma, à qual a família Schopenhauer confiara certa quantia de dinheiro, exige pleno pagamento da sua parte. "É meu sincero desejo que possa prosperar de novo", escreve ao chefe da firma, "e terei imenso prazer se me atingir tal notícia; só quero que a sua felicidade não se estabeleça nas ruínas da minha. Os meus filhos ainda passarão por mim em brilhante viatura, enquanto eu me afastarei ofegante, pelas ruas, um velho, gasto professor... Os meus mais sinceros desejos o acompanham - pressu-posto que não me fique devendo nada... " O resultado foi que Schopenhauer recebeu a soma integral, ao passo que para a mãe e a irmã só restaram 30 por cento.

Depois de uma nova viagem à Itália, o filósofo se estabelece em 1833 definitivamente em Frankfort, onde se tornou habitué da mesa do Englisher Hof. Como companheiro tem um cão chamado Atma ("alma univer-sal", na filosofia bramânica). Pontualmente a uma hora, ao soar a campainha, dirige-se o Dr. Schopenhauer para o almoço, vestindo uma espécie de fraque preto de corte antiquado. A grande calva é marginada, de ambos os lados, de duas asas esvoaçantes de cabelo branco. A barba hanseática que emoldura o contorno da face, sem cobrir -o queixo, é de um ruivo grisalho. A boca desdentada é larga, os lábios delgados parecem curvar-se num esgar atroz. Os olhos azuis surpreendem pelo seu bilho e duas rugas fundas descem do largo nariz para os cantos da boca. Na mesa, o filósofo da ascese come para dois, tanto assim que os donos lhe cobram uma pensão mais elevada do que de costume. A cadeira ao seu lado fica vazia, pois o filó-sofo não gosta de ser perturbado. De noite, acompanhado do cão, passeia pelos jardins, batendo com a bengala contra a terra e murmurando palavras inentendíveis. "O velho cão Schopenhauer está rosnando", costumava dizer Liszt.

Um outono pacífico, sereno. 0 ancião parece aque-cer-se ao sol tardio da glória. Lendo as cartas daquela fase, nota-se a imensa satisfação do solitário homem, ao verificar que aqui e acolá surgem círculos de adeptos, sim, verdadeiros apóstolos que lhe propagam a fama crescente. Em suas cartas registra cada visita de homens ilustres e não ilustres, vaidosamente posa para pintores e daguerreotipistas e analisa a semelhança do retrato, nunca satisfeito. Nesta altura, quase não se lhe acredita mais o pessimismo. Um homem, de nome Richarcl Wagner, manda-lhe o Anel dos Nibelungen e Schopenhauer lhe aconselha a tornar-se poeta ao invés de compositor. Realmente, não falta muito para que Schopenhauer se transforme em otimista ao notar a repentina moda do seu pessimismo. O filósofo, que pregou a negação da vontade de viver, tem uma tremenda vontade de viver. "Eu alcançarei uma idade avançadís-sima" , diz certa vez. "Meu longo sono e bom estômago mo revelam. Gostaria de chegar aos 90 anos. Mesmo aos 80, a morte tem ainda algo de violento".

Onze meses mais tarde morre sem sofrer muito. Contava 72 anos.

Que havia atrás da máscara trágica desse homem? Schopenhauer era um homem de imensa sensibilidade, um gênio dolorosamente exposto ao sofrimento e aos tormentos do desequilíbrio. Toda a sua vida foi uma luta tenaz para atingir um grau suportável de estabilidade psíquica. Andava pesadamente couraçado: couraça cheia de ferrões por fora - não me toquem! e coberta de asbesto por dentro: pois havia fogo nele - a chama de instintos tremendamente violentos e de impulsos insaciáveis.

A sua luta é perfeitamente caracterizada na parábola que dedicou à bem amada cantora Karolina Jagemann, quando ela já se casara com outrem:

"Durante um áspero dia invernal apertam-se os por-cos-espinhos de uma manada uns contra os outros para se proporcionarem mútuo calor. Mas, ao fazê-lo, ferir-se-ão reciprocamente com seus espinhos, de modo que terão de separar-se. De novo obrigados a ajuntar-se, por causa do frio, tornarão a machucar-se e a distanciar-se. Essas al-ternativas de aproximação e afastamento durarão até que lhes seja dado encontrar uma distância média em que am-bos os males ficam mitigados".

No seu sistema filosófico, Schopenhauer parte de um dos princípios fundarnentais de Kant: tudo que sei do mundo é, de início, a minha representação. As coisas só me são conhecidas, eu só as aprendo enquanto se apresentam como dados da minha consciência. Esta flor, aquele pássaro, a sua côr, seu cheiro, som e solidez, nada sei deles senão o que os meus sentidos transmitem àminha consciência. Como as coisas seriam em si, fora da minha consciência, não o posso saber; pois quando uma coisa se me apresenta, aprendo-a já impregnada das peculiaridades que os meus sentidos e a minha consciêcia lhe imprimem. Aquela flor, este pássaro serão "em si", fora da consciência, sonoros, coloridos, duros, macios, cheirosos? Não o sei, diria Kant; os conheço fora da minha consciência. Só os percebo dentro das formas da minha razão que é a condição de todos os conhecimentos. Se o olho humano fosse diverso, diversas se me apresen-tariam as coisas; se usasse óculos azuis, todo o mundo se tornaria azul; se fosse surdo, as coisas se tornariam mudas e eterno silêncio reinaria no mundo.

Isso, em filosofia, é um lugar comum e não é preciso analisar o pensamento especificamente kantiano. Basta ve-rificarmos que de início só conheço o mundo como ele me aparece, como ele se apresenta aos meus sentidos e dentro das formas da minha consciência, com uma palavra, como eu o REPRESENTO: o mundo é minha REPRESENTAÇÃO - com essa afirmação começa a obra de Schopenhauer. O mundo, como ele se apresenta nas formas da minha cons-ciência (formas subjetivas como tempo, espaço e causalidade, isto é, a lei de causa e efeito) é só aparência e Kant chama a isso de "mundo dos fenômenos". As coisas independentes da minha consciência, isto é, não aprendidas nas formas de tempo, espaço, causalidade, formas peculiares à consciência humana, Kant as chama de "coisas em si". Negava que fosse possível saber algo delas.

"O mundo é minha representação" , diria também Schopenhauer. Só o conheço desdobrado na duração do tempo e esparramado na extensão do espaço, tudo se pro-cessando segundo a lei de causa e efeito. Como seriam as coisas na realidade, em si mesmas, independentes da minha consciência e das suas formas e leis? Kant, afirmara não o saber. É neste ponto que Schopenhauer se separa de Kant, tornando-se metafísico. Afirmava sabê-lo. O mun-do, na sua essência, em si, independente da minha cons-ciência, é VONTADE. 0 mundo "em si" é vontade, para nós é representação. Posso sabê-lo, pois não sou só cons-ciência, sou também corpo e coisa entre coisas e corpos. Como todas as coisas, meu corpo é-me dado como coisa qualquer e nesse caso ele nada é senão mais um "fenômeno" exterior, dado pelos sentidos e aprendido nas formas da minha consciência. Além disso, porém, tenho um conhe-cimento imediato do meu corpo, "de dentro", por assim dizer. E visto sob essa perspectiva, a intimidade do meu corpo se me revela como vontade. É esta a palavra que se torna a chave de tudo e que revela o funcionar íntimo do meu próprio ser, das, minhas ações, dos meus movi-mentos. Portanto, meu corpo é-me dado de duas maneiras diversas: uma vez como representação, como objeto entre objetos, submetidos às leis de todos os fenômenos que me aparecem; e depois, ele me é dado de modo totalmente di-verso: como algo imediatamente conhecido que se define por meio do termo "vontade". Na verdade, meu corpo nada é senão vontade que me aparece exteriormente em forma de corpo. O corpo é a objetivação da vontade. Intimamente, porém, pela intuição direta e imediata, sei-o vontade.

Eis a essência da filosofia dq Schopenhauer: Sei-me, intimamente, como um ser que quer, que deseja, que nunca deixa de querer e de desejar. Sei intimamente, que sou vontade. Sei que, o que exteriormente se apresenta como corpo, como objeto entre objetos, intimamente é um eterno querer, ansear, desejar.

Mas a suposição de que tal fato só se refira à minha própria pessoa seria digna de um homem maduro para o hospício. Evidentemente, os homens que me cercam não são só a minha representação subjetiva; eles têm realidade fora da minha consciência e a sua realidade intima é, como a minha, vontade. E isso não só vale dos homens, mas também dos animais, sim, mesmo das plantas. Também a essência deles é vontade, certamente uma vontade menos consciente, mais irracional e não iluminada pela inteli-gência; mas sempre vontade. E por mais que eu desça na escala do ser, sempre encontro, como realidade profunda, velada sob a superfície das aparências, objetivada nas mais diversas manifestações, - a vontade. O homem "reco-nhecerá aquela mesma vontade não só naquelas aparências, que são muito semelhantes à sua própria, isto é, nos ho-mens e anunais; mas a reflexão contínua leva-lo-á a reco-nhecê-la também na força que vibra e vegeta na planta, na força, por meio da qual se forma o cristal, por obra da qual o magneto se dirige para o polo-norte; na foça, cujo choque lhe salta do contacto de metais heterogêneo e que lhe aparece nas afinidades eletivas dos elementos como um fugir-se e atraír-se; e ela lhe aparecerá mesmo na gravidade, que em toda matéria tão poderosamente se ma-nifesta - impelindo a pedra para a terra e a terra para o sol: tudo isso, o homem reconhecerá como diverso só na aparência, intimamente, porém, tudo se lhe afigurará, como a mesma essência, como aquilo que da própria intimidade, lhe é tão bem conhecido e que nas manifestações mais claras e distintas nós costumamos chamar - "vontade".

Segue daí que o mundo é, na sua realidade ínthna, vontade - vontade una e eterna; pois só as suas mani-festações, como elas me aparecem segundo as formas da minha consciência, se desdobram na multiplicidade e di-versidade de tempo e espaço; em si, como coisa em si, fora dessas formas subjetivas, há só uma vontade não con-taminada pela diversidade de tempo e espaço - uma vontade única e intemporal. Eis o Mundo como "Vontade e Representação" - um mundo só, visto de dois lados, uma vez da intimidade real, como ela me é dada na intuição imediata do meu próprio corpo, outra vez da exterioridade fenomenal ou aparente, como ela me é dada segundo as formas subjectivas da minha inteligência.

O mundo é, portanto, na sua essência, vontade. Mas uma vontade irracional, cega e surda, pois a inteligência é só uma manifestação tardia dessa mesma vontade; só no homem a razão desperta, nos animais, ela é confusa. Nas plantas quase inexistente e nas coisas chamadas inani-madas a vontade se externa em toda a sua escuta irracionalidade. No próprio homem, a vontade é aquela mesma força irracional e inconsciente, só coberta por uma crosta delgada de consciência e razão. Razão que, com o um mí-nimo abalo, se rompe, deixando à vista as entranhas fu-megantes do nosso caótico ser o qual, na sua intimidade, é trevas e inconsciência. Tremenda concepção, concepção de um homem que via impor-se a vontade cega, nas guerras napoleônicas, no caos e nas ruinas que elas espalharam sôbre o continente flagelado. Entendemos a máscara trágica desse homem, os lábios finos, os vincos fundos da paisagem vulcânica dessa fisionomia devastada pela desíilusão e pelo despeito... A ele mesmo se revela essa vontade no implacável impulso sexual:

Ó volúpia, ó inferno,

Ó sentidos, ó amor -

Insaciáveis e invencíveis!

O sexo está no centro do mundo: pois a vontade éessencialmente vontade de viver, nada além disso. Ela se -manifesta no mundo animal através do impulso sexual, externamente representado pelos órgãos sexuais; impulso inconsciente de procriação, chamado "amor" pela deli-catesse da inteligência superficialmente superposta; im-pulso de procriação, pois o indivíduo, aparência fugidia, manifestação passageira, nada vale em comparação com a espécie, manifestaçíío eterna e pura da vontade. A vontade, no impulso cego da auto-realizaçã o, expressa-se numa es-cala hierárquica de "idéias platônicas" - entidades eter-nas, espécies, que são a objetivação imediata e intemporal da vontade: cristais, metais, plantas, animais, homens; ou mais de perto: em espécies tais como "cavalo", "macaco" "homem". Só no cimo dessa pirâmide hierárquica de "idéias platônicas", surge, frágil flor, a inteligência, fenômeno superficial, lanterna que a vontade se acende para encontrar o seu caminho na escuridão, mero instrumento e escravo, manipulado "à vontade" pela vontade.

Mas um mundo que, na sua essência, é vontade de viver, é um mundo de sofrimento e dores. Pois essa vontade cega não encontra, fora de si, nada que fôsse último fim onde pudesse descansar. O próprio ser da vontade é um querer incessante e eterno, um ansear que nunca pode ser Satisfeito, pois a satisfação seria a própria contradição lógica da vontade. É uma vontade insaciável, sem meta, sem sentido, que revira surdamente as entranhas do universo, multiplicada e fragmentada, em tempo e espaço, na fome e sede de milhões de intestinos, estômagos e dentes e no desejo violento de milhões de órgãos sexuais ávidos de volúpia e de procriação.

Todo desejo é sofrimento, pois é a expressão de algo que nos falta e de que necessitamos com urgência. E enquanto o desejo é infinito e eterno, a satisfação é limi-tada e breve - semelhante "a uma esmola dada a um mendigo, suficiente para para mantê-lo vivo hoje a fim de que a sua miséria ge prolongue no dia seguinte..." Do desejo satisfeito já nasce um novo desejo e alcançamos uma vez um estado de saciedade, surge o tédio, tortura igual à do desejo. Assim a vida é como um pêndulo que oscila entre o sofrimento e o tédio, e a nossa existência é "um negócio que não cobre as despesas..." Páginas e páginas Schopenhauer enche com a descrição de todas as torturas, desgraças e desesperos que avassalam a espécie humana, mais sofredora do que todas as outras, por ser mais cons. ciente e Éwnsível; pois quanto maior a sensibilidade, tanto maior o sofrimento.

Todavia, em meio do redemoinho das desgraças surge, sobrenadando, a inteligência humana, fragil instrumento criado pela própria vontade. Mas esse instrumento possui potências inesperadas. Schopenhauer, o metafísico do irracional, que proclama a realidade absoluta da vontade cega, boçal, prega, como coroamento da sua obra, o poder, da inteligência: uma vez surgida e desenvolvida ela pode tornar-se autônoma e independente, amotinando-se contra a sua servitude sob o chicote da vontade. Verificando, na reflexão, a tragédia causada pela vontade de viver, o homem é capaz de revoltar-se, negando a vontade de viver. Não pelo suicídio, porém, "pois a negação (da vontade) tem a sua essência no fato de que não se detestam os sofrimentos, mas os prazeres da vida. O suicida quer a vida, somente é insatisfeito com as condições em que ela se lhe apresenta. Por isso não renuncia, de modo algum, à vontade de viver, mas apenas à vida, aniquilando apenas o fenômeno individual.. ."

O sistema de Schopenhauer termina com um evangelho de salvação, salvação pela inteligência, que se manifesta em mais alto grau no gênio e no santo. O gênio, arran-cando- se duma existência conspurcada pelos interesses da vontade, entrega-se à profunda contemplação das idéias platônicas, cuja visão intuitiva reproduz na obra de arte. Nesta contemplação - de que também participa o apre-ciador da obra de arte - predomina a razão decididamente sôbre os interesses vitais e o homem é, por um momento ao menos, livre do infinito fluxo e do constante turbilhonar da vontade, como se tivesse desembarcado numa ilha remota de paz e beatitude. E essa felicidade de quem já não é escravo dos interesses vitais compensa o gênio pela sua mortal solidão "em meio de uma diferente raça de homens" a que nunca é capaz de adaptar-se.

É o santo, porém, no qual a negação da vontade atinge o mais alto grau. É ele que, penetrando no âmago do mis-tério, compreende que a existência individual é mero fenô-meno e aparência, nada senão o véu de Maia, que cobre os olhos de quem vive entregue aos interesses cotidianos e raciocina segundo as formas subjetivas de tempo, espaço e causalidade. 0 santo compreende que, na essência, ele idêntico a todos os homens (e mesmo aos animais), pois é a mesma vontade que se manifesta em todos. E compreen-dendo que a multiplicidade dos indivíduos é mera aparência, já não afirmará egoisticamente a vontade de viver, mas sentirá, com profunda compaixão, o sofrimento de todos os irmãos, idêntico ao seu próprio sofrimento. E a compaixão, essa participação sofredora, que intensifica a própria dor além de todos os limites, levará o santo à ascese e à completa negação da vontade de viver.

Cessa a procriação. Se a negação da vontade se tornar predominante - e tal acontecimento dependeria de um milagre - neste caso, eliminada a vontade, desaparecerá também o mundo dos fenômenos que nada é senão uma manifestação daquela. "Não havendo vontade, não há representação, nem mundo". Não resta nada; ou resta só o Nada - o Nirvana.

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