segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Filosofia - Legado do Inconformismo Simone de Beauvoir

Vida & Arte

ENTREVISTA

Legado do inconformismo

Em entrevista ao O POVO por e-mail, a pesquisadora Deise Quintiliano Pereira fala sobre a importância dos escritos de Simone de Beauvoir para a história do pensamento do século XX.

19/01/2008 16:27


A pesquisadora Deise Quintiliano Pereira é também professora de literatura francesa no Rio de Janeiro(Foto: Divulgação) Nas práticas sociais, a liberdade era a principal bandeira defendida por Simone de Beauvoir. Com base no existencialismo como corrente filosófica que defendia, a filósofa e ensaísta francesa mantinha postura de vigilância crítica em relação à sociedade, ao lado de outros intelectuais, amigos e amantes que manteve ao longo de sua vida. "Talvez hoje, distanciados no tempo, ainda tenhamos alguma dificuldade em compreender o xeque-mate radical que o inconformismo de Simone impôs aos valores burgueses que ela própria encarnava", pontua a pesquisadora Deise Quintiliano Pereira, em entrevista por e-mail ao O POVO.

Doutora em Letras Neolatinas pela Ecole dês Hautes em Sciences Sociales, na França, Deise Quintiliano é professora de Literatura Francesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde desenvolve pesquisas sobre a obra de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beauvoir. Ela argumenta que Sartre respeitava profundamente o papel que Beauvoir exercia na sua vida intelectual. "Ela era a leitora mais atenta, o juiz mais rigoroso, o censor mais mortífero que ele tinha pela frente e era isso que incitava essa relação e a circunscrevia, a todos os níveis, no campo da reciprocidade, mais do que no da competição". (Camila Vieira)


O POVO - Agora que comemoramos o centenário de Simone de Beauvoir, qual o legado que o pensamento dela nos deixou e que ainda é pertinente para o mundo contemporâneo?
Deise Quintiliano Pereira - Creio que entre tantas mensagens que perpassam sua obra, o investimento na liberdade seja, sem dúvida, a pedra de toque que caracteriza o pensamento beauvoiriano e que nos deixa um riquíssimo legado nas práticas sociais e nas relações de trocas humanas: a invenção de novas formas de constituição da família, a noção do "casal contratual", a revisão generosa de uma orientação moral e social, em suma, a total impossibilidade de legitimar qualquer tipo, feição ou caráter de opressão.



OP - Tanto na ficção quanto na filosofia, os escritos de Simone de Beauvoir trazem preocupações do existencialismo, como a ética e a liberdade. Dentro desta corrente filosófica, como o pensamento dela se diferenciava?
Deise - A base do existencialismo funda-se justamente no conceito de liberdade. Nesse sentido, não há parâmetros rígidos, regras preestabelecidas ou categóricas a serem seguidas. O homem (e logicamente também a mulher) é livre... é pura liberdade. Como Sartre afirma em O Existencialismo é um Humanismo: "o existencialismo é uma doutrina que torna a vida possível e que declara, além disso, que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana". As linhas de fuga que podem ser atribuídas ao pensamento beauvoiriano - sobretudo as que dizem respeito às suas reflexões sobre questões específicas de uma lógica do feminino e da condição da mulher na sociedade - não a afastam, assim, no meu entender, desses pressupostos fundamentais que norteiam o movimento, menos ainda sua postura de eterna vigilância crítica para com a sociedade, os intelectuais, os amigos, os inimigos e os amantes que a circundavam.

OP - Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir viveram relacionamento pouco convencional que durou 50 anos. Como o pensamento de Beauvoir dialogava com o de Sartre? Na maioria das vezes, eles concordavam ou discordavam? Havia competição entre os dois?
Deise - Não obstante o que os detratores da obra de ambos afirmem, Sartre respeitava profundamente o papel que Simone exercia na sua vida intelectual. Ela era a leitora mais atenta, o juiz mais rigoroso, (carinhosamente denominado "meu doce juiz"), o censor mais mortífero que ele tinha pela frente e era isso que incitava essa relação e a circunscrevia, a todos os níveis, no campo da reciprocidade, mais do que no da competição. A opinião dela tinha a força de um veredicto, conforme ele afirma nos Diários de uma guerra esquisita. Ao longo de tantos anos, em se tratando de duas inteligências tão raras, é evidente que houve muita concordância e muita discordância, o que não impedia Sartre de reconhecer nela a figura do único interlocutor que realmente contatava, a ponto de refazer toda uma reflexão diante da não aquiescência ou de um simples torcer de nariz dela...

OP - Sartre e Beauvoir bancaram o "amor sublime" entre homem e mulher, com direito a cada um manter casos extraconjugais. Sartre não tinha interesse em dominar Simone. Sua liberdade o interessava, assim como seu talento e sua produção escrita. Nunca moraram na mesma casa. No entanto, a própria Simone de Beauvoir chegou a escrever que sentia falta de Sartre, quando ambos ficavam longe um do outro. Para ela, que lutou pela independência e tentou construir uma relação de igualdade com Sartre, tal relação de dependência não parece contraditória?
Deise - Absolutamente. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que vejo com muito bons olhos as contradições, os paradoxos, as aporias que caracterizam obras, pessoas, personagens. Considero que a riqueza maior do pensamento humano insira-se nas brechas abertas pelo conflito, pelas contradições, pelas mudanças inesperadas, pelas releituras, em suma, por tudo o que permita ao homem e à mulher reinventarem-se a cada dia. Contudo, no que diz respeito à relação Beauvoir-Sartre, cabe lembrar que dentre tantas inovações, eles também conseguiram estabelecer a distinção entre amor necessário e amor contingente. A falta que Simone sentia de Sartre inscreve-se, sem dúvida, nessa necessidade que era, aliás, recíproca.



OP - Como você interpreta o desenvolvimento do movimento feminista, após a publicação do livro O Segundo Sexo, em termos da própria trajetória de Beauvoir como intelectual?
Deise - O Segundo Sexo é o diamante mais lapidado do pensamento beauvoirianoo texto fundador que conglomera, pela primeira vez na história, reflexões esparsas de célebres, lúcidas e destemidas predecessoras, como Virginia Woolf ou Mary Woolestonecraft, que ousaram se afastar dos caminhos regrados pela tradição, inventando o feminismo europeu antes mesmo que o termo fosse criado. Há quase 50 anos reivindicado como o livro do movimento feminista, O Segundo Sexo visava responder a pergunta "o que é uma mulher?", reescrevendo a história das mulheres à luz da biologia e da sociologia, sem abdicar de sua ancoragem concreta na filosofia. Desprovida de qualquer sentimento de acerto de contas ou de revanchismo, Simone vislumbra com essa publicação colocar abaixo estereótipos, lugares comuns, preconceitos, tabus e afirmações peremptórias sustentadas durante milênios por grandes pensadores e significativa parte da intelligentsia, empedernindo a mulher num destino cristalizado e predeterminado. Aos 37 anos, ela já havia publicado A Convidada, Pyrrhus e Cinéas e escrito a peça As Bocas Inúteis, porém continuava sendo reconhecida como "a companheira de Sartre" e observaria, mais tarde, que jamais alguém tinha imaginado considerar Sartre como "o companheiro de Simone de Beauvoir". Talvez, o advento de O Segundo Sexo tenha tornado, para muitos e muitas, essa aspiração possível.

OP - Se Beauvoir ainda estivesse viva, como a senhora acredita que ela enfrentaria alguns desafios atuais?
Deise - Sem nenhuma serenidade... Sem qualquer cerimônia ou burocracia... Com o mesmo rigor com que enfrentou os problemas de sua época e com o vigor de quem abraça apaixonadamente uma causa. De maneira inexpugnável, livre, clara e contundente. Com respeito ao indivíduo e às causas da liberdade de si e do outro. Com a força de suas convicções e a ousadia de seu pensamento. Apostando no individual em detrimento do "global", na liberdade em contraposição à opressão, defendendo a paz e se opondo aos interesses tentaculares que subjazem às guerras. Como sempre: com lucidez, coragem, coerência e altivez. Com certeza, não subiria no palanque de Nicolas Sarkozy

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