quarta-feira, 6 de março de 2013

Carta à meu pai - Kafka

Foi difícil digerir Kafka, com aquela história de amanhecer barata, ou coisa parecida, aceitar e relatar o caos, me chamou a atenção, depois veio "O Processo", lia na viagem para o Mato Grosso, 3 dias de onibus, uma decepção....mas, fiquei curiosa com essa "Carta ao pai, do Frans"

Retirei fragmentos do início ao fim do livro, uma carta na verdade, 35 paginas, coisa profunda, intensa e realmente verdadeira, de quem ainda nem conhecia direito Freud, imaginem esse homem hj...

Creio que o que intriga é a clareza dos sentimentos bem entendidos e sem receios, mágoas ou amarguras, é simplesmente o relato do ocorrido, sem julgamentos ou valores e quando os há, são específicos, obra magnífica que indico especialmente aos psicanalistas que estudam as manifestações fenomenológicas da linguagem e expressão humana, num set, numa determinada hora e local, seguido de quase um ritual de desvelamento de sentidos e de juizos, quase um "transe" só para ouvir e oferecer leituras como a que Kafka nos ofereceu sobre si mesmo.

Poucos chegaram tão longe, ainda (para ele mesmo) que morreu cedo.

Seguem fragmentos, quem quiser, solicita a obra...bjs


...Eu teria precisado de um pouco de estímulo, de um pouco de amabilidade, de um pouco de abertura para o meu caminho, mas ao invés disso você o obstruiu, certamente com a boa intenção de que eu devia seguir outro. Mas para isso eu não tinha condições. Você me estimulava, por exemplo, quando eu batia continência e marchava direito, no entanto eu não era um futuro soldado; ou me estimulava quando eu comia vigorosamente e além disso conseguia beber cerveja; ou quando sabia repetir canções que não compreendia, ou arremedar suas expressões prediletas; nada disso, entretanto, fazia parte do meu futuro. E é significativo que até hoje você si me encoraje de fato naquilo que o afeta pessoalmente, quando se trata do seu amor-próprio, que eu firo (por exemplo, com o meu projeto de casamento)...

...Para mim, sempre foi incompreensível sua total falta de sensibilidade em relação à dor e à vergonha que podia me infligir com palavras e juízos: era como se você não tivesse a menor noção da sua força...


...Mas para mim, quando criança, tudo o que você bradava era logo mandamento do céu, eu jamais o esquecia, ficava sendo para mim o recurso mais importante para poder julgar o mundo, sobretudo para julgar você mesmo, e nisso o seu fracasso era completo. Como em criança eu ficava junto de você principalmente na hora das refeições, a sua lição principal era em grande parte uma lição sobre o comportamento correto à mesa. O que vinha à mesa precisava ser comido, não era permitido falar sobre
a qualidade da comida - mas você freqüentemente achava a comida intragável; chamava-a de "grude", a "besta" (a cozinheira) a tinha estragado. Como você por natureza tinha um apetite vigoroso e uma predileção especial por comer tudo rápido, quente e em grandes bocados, o filho tinha de se apressar, reinava à mesa um silêncio sombrio, interrompido por admoestações: "Primeiro coma, depois fale", ou "Mais depressa, mais depressa", ou "Veja: já terminei de comer faz muito tempo". Não era permitido partir os ossos com os dentes, mas você podia. Não era permitido sorver o vinagre, mas você podia. O principal era que se cortasse o pão direito, mas o fato de que você o fizesse com uma faca pingando molho era indiferente...

...Era preciso prestar atenção para que não caíssem restos de comida no chão, no final a maioria
deles ficava embaixo de você. À mesa não era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você polia e cortava as unhas, apontava lápis, limpava os ouvidos com o palito de dentes. Por favor, pai, me entenda bem, esses pormenores teriam sido em si mesmos totalmente insignificantes, eles só me oprimiam porque você, o homem tão imensamente decisivo, não atendia ele mesmo aos mandamentos que me impunha. Com isso o mundo se dividia para mim em três partes: uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não-cumprimento; e finalmente um terceiro mundo,
onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência...

...Eu vivia imerso na vergonha: ou seguia as suas leis, e isso era vergonha porque elas só valiam para mim; ou ficava teimoso, e isso também era vergonha, pois como me permitia ser teimoso diante de você?, ou então não podia obedecer porque, por exemplo, não tinha a sua força, o seu apetite, a sua destreza, embora você exigisse isso de mim como algo natural: esta era com certeza a vergonha maior. Desse modo se moviam não as reflexões, mas os sentimentos do menino....

Para o outro irmão que o intimida]
..."Faça o que quiser; por mim você está livre; você é maior de idade; não tenho conselhos para lhe dar" - e tudo naquela inflexão terrível e rouca da ira e da completa condenação, diante da qual eu hoje só tremo menos que na infância porque o sentimento de culpa exclusivo da criança foi em parte substituído pela compreensão do nosso comum
desamparo.

 "Sempre do contra em tudo" não foi realmente meu princípio de vida diante de você, como acredita e me recrimina por isso. Pelo contrário:
se eu tivesse obedecido menos, você na certa estaria muito mais satisfeito comigo. O fato é que as suas medidas educativas acertaram no alvo; não me esquivei a nenhuma
investida sua; assim como sou (naturalmente pondo de lado os fundamentos e a influência da vida), sou o resultado da sua educação e da minha docilidade. Que esse
resultado apesar disso lhe seja penoso, que você se recuse inconscientemente a reconhecê-lo como produto da sua educação, se deve justamente ao fato de que a sua
mão e o meu material eram tão estranhos um ao outro. Você dizia: "Nenhuma palavra de contestação!" e com isso queria silenciar em mim as forças contrárias que Ihe
eram tão desagradáveis, mas essa influência era muito forte para mim, eu era dócil demais, emudecia por completo, me escondia de você e só ousava me mexer quando
estava tão distante que o seu poder não me alcançava mais, pelo menos diretamente. Mas você estava ali, diante de mim, e tudo Ihe parecia ser novamente "do contra",

É fato também que você nunca me bateu de verdade. Mas os gritos, o enrubescimento do seu rosto, o gesto de tirar a cinta e deixá-la pronta no espaldar da cadeira
para mim eram quase piores.

A avareza é sem dúvida um dos sinais mais confiáveis de infelicidade profunda17

É muito fácil rebater isso em qualquer parte e aqui também. Sem dúvida não se tratava de algum ensinamento que você devesse ter dado aos seus filhos, mas sim de
uma vida exemplar; se o seu judaísmo tivesse sido mais forte, o seu exemplo também teria sido mais convincente; isso é óbvio e mais uma vez não constitui, de modo
algum, uma recriminação, apenas uma defesa contra as recriminações que você faz.22

É como se alguém tivesse de subir cinco degraus de escada
e uma segunda pessoa apenas um degrau, mas que, pelo menos para ela, é tão alto quanto aqueles cinco juntos; o primeiro vai vencer não só os cinco degraus, mas também
centenas e milhares de outros, terá levado uma vida ampla e muito fatigante, porém nenhum dos degraus que subiu terá sido para ele tão importante como, para o segundo,
aquele degrau único, primeiro, alto, impossível de escalar com as forças todas de que dispõe, e que ele não só não pode subir, como também passar por cima.
 27

Estou convencido de que casar, fundar uma família, acolher todos os filhos que vierem, mantê-los neste mundo inseguro e guiá-los um pouco, é o máximo que um homem
pode em geral conseguir. O fato de serem tantos os que o conseguem não é uma prova em contrário, pois em primeiro lugar efetivamente não são muitos os que conseguem,
e em segundo esses poucos não o "fazem", simplesmente "acontece" com eles; na verdade não é aquele máximo, mas é algo muito grande e muito honroso (principalmente
porque "fazer" e "acontecer" não se deixam distinguir nitidamente um do outro). E afinal também não se trata de modo algum desse máximo, e sim de alguma aproximação
remota, porém decente; sem dúvida não é necessário voar para o meio do sol, mas ir rastejando até um lugarzinho limpo sobre a terra, onde ele às vezes brilha e onde
é possível se aquecer um pouco.

É claro que na realidade as coisas não se encaixam tão bem como as provas contidas na minha carta, pois a vida é mais
que um jogo de paciência; mas com a correção que resulta dessa réplica - que não posso nem quero estender aos detalhes - alcançou a meu ver alguma coisa tão próxima
da verdade, que pode nos tranqüilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais leves para ambos.

Franz




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